MEMORIA DA TOMADA DOS SETE POVOS DE MISSÕES DA AMERICA DE HESPANHA
Que hoje se acham anexos ao domínio do príncipe regente de Portugal, nosso senhor: escrita em Lisboa, no ano de 1806, por Gabriel Ribeiro de Almeida.
[ortografia modernizada]
Governava a capitania do Rio Grande de S. Pedro o tenente-general Sebastião Xavier da Veiga Cabral [Sebastião Xavier da Veiga Cabral da Câmara (1742-1801)], quando no ano de 1801 se declarou a guerra entre Portugal e Espanha. Logo que lhe chegou esta notícia por Pernambuco, mandou pôr editais, para que os povos conhecessem a nação espanhola por inimiga. Não há palavras com que se expresse o alvoroço de todos os habitantes daquela capitania, na esperança de fazerem com as armas na mão uma divisão de limites mais vantajosa. Recebida enfim a certeza por ofício do vice-rei do Rio de Janeiro, feita a declaração da guerra com a formalidade do costume, mandou o governador aprontar as tropas, tanto pagas como milicianas; mas refletindo que o meio mais essencial de conservar a disciplina nos corpos militares, e individualmente a satisfação de cada soldado pelo bem do real serviço, é tê-los bem pagos de seus soldos, e vestidos de seus uniformes, e que desgraçadamente aquela tropa estava reduzida á ultima miséria, não tendo por si mais que a sua coragem, pois que a tesouraria do Rio de Janeiro, por quem naquele tempo eram pagos, lhe devia distintamente doze para quinze anos de soldo, e outro tanto ou mais de fardamento, por único recurso contou com a disposição dos povos para vestir a tropa, pois os via tão desejosos de guerra; deu as ordens aos chefes dos regimentos, tanto ao coronel Manuel Marques de Sousa [1743-1820], como ao tenente coronel Patrício José Correia da Câmara [futuro visconde de Pelotas (1744-1827)], que convocassem as pessoas principais do povo, e lhes expusessem a necessidade que havia de socorrer a tropa para marchar naquele rigoroso inverno a campanha. O mesmo espírito de patriotismo, que havia feito que os povos gostassem [de] entrar voluntariamente na guerra, fez com que em poucos dias se vestisse a tropa; porque, os que não podiam dar dinheiro davam panos, bois, cavalos, carros e escravos, oferecendo aos trabalhos tudo em benefício da tropa e do estado, e isto continuaram a praticar em toda a guerra.
Dividido o exército em dois corpos, o fez marchar para as fronteiras respetivas, uma do Rio Grande, e outra do Rio Pardo; a do Rio Grande, comandada pelo coronel Marques de Sousa, se compunha de oitocentas praças, a maior parte milicianos; e a do Rio Pardo, comandada pelo tenente-coronel Patrício José Correia da Câmara, se compunha de setecentas praças, também a maior parte milicianos.
Nesta mesma ocasião chegavam os mais poderosos daquela capitania a pedir licença ao governador para levantar companhias de gente de cavalo, e armá-los a sua custa, para saírem contra o inimigo; e os mais pobres se juntavam em ranchos, e faziam o mesmo: e como todos levavam fácil concessão, concorreu para o exército gente inumerável e resoluta, com faculdade de passar adiante dos exércitos, e fazer as hostilidades possíveis ao inimigo. Desta sorte se apresentou naquela fronteira um exército formidável, não tanto pelo número dos indivíduos, como pela disposição dos ânimos, e isto sem despesa do estado, e a maior parte destas tropas milicianas, esta a mais atrevida, robusta e ativa nas suas campanhas, em quem os povos confiavam o seu triunfo.
Os espanhóis, vendo os movimentos dos dois exércitos portugueses, que marchavam para as raias, abandonaram as guardas, de maneira que já as nossas tropas não acharam nas ditas guardas senão as barracas, que logo demoliram, e começando pela lagoa Mirim para o norte, eram as guardas as seguintes: 1.ª, a da Lagoa; 2.ª, Quilombo; 3.ª, S. José; 4.ª, Santa Rosa; 5.ª Santa Tecla; 6.ª, Taquarembó; 7.ª, Batovi; 8.ª, S. Sebastião; as duas últimas para a parte de Missões, e as mais da parte de Montevidéu, confrontando com o Rio Pardo e Rio Grande; e da Lagoa Mirim para o Sul, no estreito e terra que corre entre ela e o oceano, haviam duas guardas, que foram avançadas pelo capitão Simão Soares da Silva, e o tenente José Antunes, que do Rio Grande saíram para atacar aquelas guardas, quando marchava o exército para a fronteira; pois não deixou de lembrar ao governador que podia entrar o inimigo por aquele estreito entre a lagoa Mirim e o oceano, e vir surpreender a vila de S. Pedro, na ausência daquelas tropas, cujos oficiais destruíram as ditas guardas, e se retiraram com o despojo que nelas acharam.
Retirando-se os espanhóis das guardas mencionadas, se recolheram e reuniram em um forte de campanha denominado Serro Largo, e ali se fortificaram.
Entre os voluntários paisanos que se ofereceram para ir contra o inimigo, foi um deles Manuel dos Santos Pedroso, homem fazendeiro e soldado miliciano; e obtida a licença, marchou com 40 homens, de que se fez chefe, atacou e pôs em fugida a guarda de S. Martinho, e na posse desta, passou a saquear algumas fazendas; nestas imediações se retirou com mais de 100 animais vacum e cavalar deixando em abandono aquele posto; e o capitão Francisco Barreto [Francisco Barreto Pereira Pinto [(1758-1804)], aproveitando-se da ocasião, não se descuidou de pôr imediatamente guarda nossa, pois é principal entrada para Missões. José Borges do Canto [José Francisco Borges do Canto (1775-1805)], e eu com 40 homens, fizemos a grande conquista de sete povos de Missões, que vou a referir.
O dito Canto tinha sido soldado de Dragões, e antes de ser disciplinado no seu regimento havia desertado, há bastantes anos, e vivia entre os portugueses e espanhóis naquela vasta campanha povoada de uma nação de gentios charruas e minuanos, couto e refúgio dos criminosos de ambas as nações. O dito José do Canto ora entrava na capitania do Rio Grande de S. Pedro, donde era natural, ora nas terras dos espanhóis, a traficar contrabandos: em uma e outra parte passeava oculto, pois se tinha feito célebre com a sua vida extravagante e odiosa a ambas as nações; e sabendo que havia perdão geral aos desertores, se apresentou ao tenente-coronel Patrício José Correia da Câmara, e pediu licença para sair a fazer alguma hostilidade ao inimigo; e obtida que foi esta, saiu por entre as fazendas, convocando alguns seus conhecidos, e incorporou consigo 14 homens.
Andava nesta mesma diligência um tenente da capitania de S. Paulo, chamado António de Almeida Lara, que por seu negocio vivia naquela capitania; este tinha consigo 12 homens, e se incorporou com o dito Canto, e saindo ambos para a fronteira, chegaram à guarda denominada S. Martinho, onde eu estava destacado debaixo das ordens do alferes André Ferreira, que ali comandava sujeito ao capitão Francisco Barreto, que comandava aquele distrito, e se achava distante duas léguas, e respondia por ele ao tenente-coronel Câmara.
Na dita guarda me ofereci a acompanhá-los, levando em minha companhia 6 camaradas da mesma, e no primeiro dia de marcha encontramos 8 homens, comandados por António dos Santos, que andava explorando a campanha, e unindo-se também a nós, com estes completaram 40 homens de armas, com os quais se fez a conquista, que vou descrevendo.
Entrámos nesta campanha no mês de agosto na força e rigor de inverno, que foi a causa da nossa felicidade em todos os sucessos. No primeiro dia fizemos 10 léguas de caminho, e pela noite ser tenebrosa, tomámos a guarda denominada S. Pedro, sem sermos sentidos, e sem dar tempo a pegar em armas; achamos ali 30 índios, comandados por um espanhol, que pusemos em prisão, e os índios em liberdade, e os capacitámos que a guerra era com os espanhóis, e não com eles. Com isto se puseram em sossego, e nos fizeram bons ofícios; não lhes consentimos saqueio algum por não desgostá-los, e unicamente nos refizemos de cavalgaduras, pois neste lugar haviam mais de 1,000 animais, entre vacum e cavalar, e seguimos a nossa viagem com o desígnio de voltar quando pudéssemos dar notícias certas das forças que havia naqueles povos.
Neste lugar me pediu o Canto que houvesse de tomar parte no comando e direções daquela empresa, pois se confundia com o não entender a língua daqueles índios, e eu os entendia perfeitamente; consenti na proposição, e tratámos consultar mutuamente em tudo quanto nos fosse preciso.
No terceiro dia de marcha avistámos algumas armas muito ao longe, e vimos que se encaminhavam para a nossa parte; fizemos-lhes emboscada em um desfiladeiro, e nos caíram prisioneiros, sem haver a menor resistência. Estes homens eram exploradores da nação inimiga, que circulavam aquela campanha para fazer aviso de toda a novidade que encontrassem. O que os comandava, pela portaria que me apresentou, mostrava o grande conceito que dele fazia o governo, e por fim era um insigne salteador, desertor das nossas tropas, chamado João Inácio [no original, Ignacio], que estava agregado ao serviço de Espanha; e logo que foi reconhecido, o conduzimos preso pela inconfidência e traição. No seguinte dia tomamos o porto denominado S. Inácio; aqui havia uma pequena guarda em resguardo de 500 cavalos; neste lugar fomos instruídos do estado em que estavam aqueles povos pela informação seguinte. Disse-nos o que comandava que dali distante quatro léguas havia uma guarda denominada S. João Mirim [Merim, no original], onde havia 10 espanhóis escolhidos e armados, e que também havia muita cavalhada, boiada mansa, e gado de munição dos povos, e 60 índios para o seu costeio; e do dito S. João Mirim a seis léguas estava um acampamento, que se tinha principiado havia oito dias, e era para disciplinar as recrutas, e para acampar as tropas que ali se haviam de reunir, vindas da cidade da Assunção, de Paraguai, e dos mais povos além do Uruguai, para marcharem contra os domínios de Portugal, e que aquele acampamento distava uma légua da capital.
Sabida esta notícia, resolvemos atacar o dito acampamento, para o que essa noite adiantei-me com 20 homens, deixando outros 20, para marcharem na manhã seguinte com o Canto, e mais gente de armas. Essa noite pus em cerco a guarda referida, e ao aclarar o dia pus tudo em prisão, favorecendo-me o escuro da noite horrorosa tempestade, que facilitou minha resolução; e chegando meu companheiro Canto, que tinha ficado como já disse, cuidámos em viajar, pondo muitas precauções essa noite, para que não fosse algum aviso ao acampamento; marchamos as ditas seis léguas, e nos avizinhámos a ele.
Era este sítio em terreno alto, resguardado de um mato e dois caudalosos arroios, em cujas entradas não haviam [sic] guardas avançadas; pois parecia-lhes impossível entrarem tropas portuguesas sem serem sentidas pelas guardas ou exploradores da campanha, pois deste acampamento às nossas raias dista trinta léguas; por este descuido em que estavam foi nossa entrada feliz.
Depois de ter explorado o acampamento, dispusemo-nos para a ação, pois vinha rompendo o dia. Pusemo-nos em linha de batalha a tropa que levámos, que se compunha de quarenta praças, como em outra parte já disse, comandando eu e José do Canto. Haveria, pouco mais ou menos, 500 passos de distância entre nós e o dito acampamento, e já teríamos avançado a metade, quando, picando a marcha a toda a brida, rapidamente nos fizemos senhores daquele acampamento, sem haver um grito de «armas» nas sentinelas como saíssem alguns tiros da barraca do comandante, que era D. José Manuel de Lascano, foi preciso fazer fogo, e sempre houve 14 mortos e bastantes feridos; e da nossa parte houve somente um camarada ferido.
Havia neste acampamento 100 espanhóis de armas, e 300 índios, os quais ficaram livres da hostilidade deste assalto, por estar o seu abarracamento algum tanto separado do dos espanhóis. Alcançada a vitória, ao aclarar do dia refleti eu que os índios estavam suspensos, e aproveitando-me da ocasião, por ver o susto em que estavam, lhes fiz uma fala no seu idioma, conforme as mais vezes tinha praticado; animei-os, e lhes fiz ver que a guerra não era com eles, e para mais os atrair, o pouco despojo que havia neste acampamento, consultando com o Canto, foi repartido por eles, e isto lhes fez tomar o expediente de se unirem às nossas armas; e vendo-nos munidos destes 300 homens, consultamos investir a capital, que estava à vista. Reparti então os novos soldados em pelotões, e avançámos ao dito povo de S. Miguel. Depois despachámos uma parte ao capitão Barreto, dando-lhe conta de tudo circunstanciadamente, e avizinhámo-nos á capital; não a levamos de escala por ter artilharia, mas pusemo-la em sítio, cujas escoltas e patrulhas, que dirigíamos a eles, a inquietavam em diversos lugares dos seus muros. Este sítio foi posto às 11 horas do dia, e se divulgou tanto naquelas circunvizinhanças. que, quando foi à noite, achámo-nos com mais do mil índios debaixo do nosso comando. No dia seguinte despachamos outra parte, em que dávamos conta de estar a capital daqueles sete povos em sítio, e que nos viesse socorro. Apertamos o sítio de tal forma, que, dentro em três dias, se rendeu por uma capitulação, feita e assignada por nós e o tenente-coronel D. Francisco Rodrigo, que ali residia, e governava os sete povos. Entramos neste povo, tomando dele posse, e se retirou o dito D. Francisco para o do rio Uruguai, levando consigo duzentos homens, que era a guarnição que ali havia.
Deste acontecimento demos parte ao nosso chefe, que era o capitão Barreto, e já era a terceira, que dávamos, sem termos resposta nem socorro.
Pondo este povo em tranquilidade, dirigi ofícios aos mais povos pertencentes àquela conquista, cujos comandantes não tiveram dúvida em se render, pois viam a sua capital tomada.
Com isto entramos em detalhe de governo, tomando posse dos povos que estavam mais imediatos, que vem a ser S. Lourenço, S. João, S. Luís, S. Ângelo, para cujos povos marchei, deixando com o Canto vinte homens de guarda na capital, e levando comigo outros vinte.
Chegando aos ditos povos, cuidei logo em recolher os estandartes das câmaras, fazendo ver que não deviam ser arvorados mais, porque o domínio espanhol tinha cessado, cujos estandartes entreguei ao falecido governador.
Ainda que as circunstâncias da guerra não me permitiam demora no recebimento daqueles povos, contudo sempre falhava um dia em cada povo, e fazia por contentar ao publico, assistindo aos seus festejos, empenhando-me em contentar aos reverendos curas das igrejas, mostrando-lhes muita benignidade, e capacitando-os que seriam respeitados das nossas tropas; e roguei-lhes juntamente que não desamparassem suas igrejas.
Esta política que usei, foi o motivo dos ditos padres se conservarem no mesmo cuidado daquele grande número de almas que tinham a seu cargo, não obstante terem o passo livre para se retirarem, segundo as condições da capitulação e ainda ali se conservaram até a minha retirada daqueles povos, que foi em 1805. Acabada a diligência do recebimento daqueles povos, recolhi-me a S. Miguel.
Manuel dos Santos Pedroso, que tinha feito o saque na guarda de S. Martinho, entrava novamente com os 40 homens que o acompanhavam, e chegando ao povo de S. Miguel, como já o visse tomado, pôs-se em consulta com os seus camaradas, e refletindo eu nisto, lhe fiz uma fala, que nos reuníssemos, pois, incorporados todos eram maiores as forças, e que éramos juntamente vassalos de um mesmo soberano. Respondeu-me com palavras equívocas, e no mesmo dia seguiu para o povo de S. Nicolau, que ficava quase nas margens do rio Uruguai, onde esperou o tenente-coronel que se retirava, fiado nas condições da capitulação, e por consequência sem susto, e antes de chegar ao rio Uruguai, o atacou uma noite e a seu salvo o fez prisioneiro, e pós em fugida toda a gente que o acompanhava, ficando senhor de toda a equipagem, fazendo voltar e conduzir para trás por uma guarda de homens sem pundonor algum, pois o insultaram nesta condução para lhe tirarem quanto trazia de precioso.
Nesta ocasião chegávamos, eu de tomar posse dos povos, o sargento-mor de Dragões José de Castro Morais com tropas em socorro, e o sobredito tenente-coronel espanhol preso, e todos nos juntámos em S. Miguel. Examinada a causa daquela prisão foi respondido que quem tinha feito aquela capitulação não eram os oficiais, e por consequência o dito Santos mandava preso para o Rio Pardo ao dito tenente-coronel. Esta ação nos foi muito sensível, mas como já estava o oficial superior presente, a ele competia prevenir e remediar tudo. O capitão Manuel Carneiro e o tenente Francisco Carvalho foram os que se incumbiram e empenharam a fazer com que os soldados do dito Santos, que conduziam ao tenente-coronel, entregassem o que lhe tinham tirado, O sargento-mor Morais olhava tudo com refinada política, estudando os meios de escurecer os nossos serviços, e lembrando-se ser o Canto soldado do seu regimento, quis puxá-lo ao esquadrão, e tirá-lo do comando daquela conquista, não fazendo apreço dos nossos serviços.
O Canto, mal costumado na sua vida dissoluta a sofrer e ainda mais com a vaidade de conquistador, cuidou em prevenir-se. e assentou defender-se comas mesmas armas com que tinha acometido ao inimigo: eu refletindo que a minha prudência não era bastante para remediar tantas controvérsias, tomei o expediente de passar ao Rio Grande, a dar conta ao governador, não daquelas intrigas, mas sim da conquista.
O tenente-coronel espanhol, sabendo que me dirigia a dar esta conta rogou-me lhe conduzisse uma carta, ao que eu não tive dúvida, nela se queixou do dito Santos ao governador, facto que fui saber no quartel-general. Tomou contada nossa conquista o sargento-mor José de Castro Morais, não com a regularidade devida, mas como quem estava com a disposição que dissemos; e eu marchei para a vila do Rio Grande, aonde cheguei em ocasião que já estava o governador doente; entreguei ao ajudante das ordens José Inácio da Silva os estandartes, a capitulação, e os mais documentos que levava, como também a carta do tenente-coronel espanhol.
O governador, pesando o valor de nossos serviços, fez nesta ocasião condecorar a José Borges do Canto com o posto de capitão de milícias, e eu em tenente da mesma companhia; e deu ordem para que fosse nomeado para alferes o que fosse demais merecimento dos 40 indivíduos a quem se devia aquela conquista; e foi nomeado Francisco Gomes de Matos. Também deu ordem o governador para que fosse preso Manuel dos Santos Pedroso, pelo insulto feito ao dito D. Francisco, governador que tinha sido daqueles povos; o que não se efetuou com a morte do governador, que foi dali a poucos dias; mas antes, depois de ter dado esta ordem, o mesmo governador o condecorou como posto de tenente de milícias, por condescender com a vontade e proposta do tenente coronel Câmara, que mandou ao furriel José Maria com uma promoção ao Rio Grande, para que a assinasse antes de morrer, em cuja ocasião foi incluído o dito Manuel dos Santos.
Eu e os meus camaradas bem conhecíamos a José do Canto, que era homem intrépido e valoroso; porém, há muitos anos desertor, e por consequência indisciplinado, não sabia do terreno, ignorava a língua, embaraçado em manobra, e era destes homens determinados, mas sem deliberação em ação; contudo, a fama que tinha adquirido nas suas extravagâncias fez com que o preferíssemos no comando, porque também não tínhamos assaz conhecimento das suas qualidades, pois nem ler nem escrever sabia, e assim o tenente e eu não duvidámos ceder-lhe, para evitar desordens, e ultimar o fim da nossa carreira. O tenente Lara, apesar das suas virtudes, não tinha nascido para a guerra; a sua constituição, e talvez educação, o desviavam da campanha: essa a razão por que não aparece nos combates, e se oculta nesta memória.
No enquanto José Borges do Canto e eu conquistávamos os povos de Missões, não estava o exército ocioso; estando o coronel Manuel Marques em uma guarda abandonada pelos espanhóis, denominada da Lagoa, teve aviso que além do rio Jaguarão aparecia um grande corpo de inimigos; despediu o capitão de milícias António Rodrigues Barbosa, o capitão António Xavier de Azambuja, e o alferes Hipólito de Couto, com duzentos e quarenta homens de armas, a encontrar-se com o inimigo, e em dois dias de campanha se toparam.
Entrando os ditos oficiais em consulta para fazerem aquele ataque, opôs-se a isto o capitão Azambuja, dizendo que ia primeiro observar em um alto se o inimigo trazia artilharia, e se retirou, levando consigo a sua companhia. Conhecido pelos outros o medo, consultaram os dois oficiais, e entraram na ação, com tal valor e intrepidez que venceram e destruíram o inimigo, ficando com a vitória desta ação o capitão António Rodrigues Barbosa e o alferes Hipólito de Couto. Houveram [sic] cinquenta mortos, setenta prisioneiros, entre estes dois capitães e um alferes; dos nossos só morreu um cabo de esquadra.
Depois desta ação fez o comandante Manuel Marques de Sousa marchar aquele exército para a fortaleza do Serro Largo, onde dissemos tinham-se ido incorporar as guardas espanholas, quando abandonaram a sua fronteira; e chegando o dito coronel à fortaleza, combateu-a e tomou-a por uma capitulação, retirando-se a tropa espanhola; entregaram-lhe aquele forte com quatro peças, munição de guerra e cinco mil pesos duros em prata. A tropa que guarnecia esta fortaleza era o seu número setecentos e sessenta homens, pois tinham sabido outros tantos desta mesma praça comandados pelo coronel Quintana, com o desígnio de ir atacar a fronteira do Rio Pardo, quo não teve efeito, como adiante se dirá.
No segundo dia desta conquista se pôs o nosso exército em retirada para o rio denominado Jaguarão. Deixo aos políticos decidir sobre este modo de proceder. Os sete povos de Missões conquistados com um punhado de homens, e por meros soldados, acham-se debaixo dos domínios de S. A. R.; e aquela fortaleza do Serro Largo, conquistada por aquele coronel, munido de artilharia, e com 800 homens, está possuída dos espanhóis, que em poucos dias se senhorearam outra vez dela.
Retirado o nosso exército, tanto que passou o rio Jaguarão para a nossa banda, o sobredito coronel licenciou a tropa, deixando só 200 homens de guarnição naquele passo, comandados pelo tenente-coronel Jerónimo Xavier de Azambuja, e se retirou para o Rio Grande, por saber estava o general à morte. Este modo de obrar, de licenciar a tropa, e entrar o inimigo nesta mesma ocasião de posse da fortaleza, que tinha perdido, foi digno de reparo a todos os prudentes, e ainda ao povo; seja o que for, eu não me proponho senão a dizer a verdade do que aconteceu.
Apossado o inimigo da fortaleza, adiantaram-se mais, até chegar ao passo do Jaguarão; e como o achassem com os 200 homens que dissemos, parou o exército inimigo, e mandou seu comandante, que era o marquês de Sobremonte [Rafael de Sobremonte Núñez Castillo Angulo Bullón Ramírez de Arellano, 3.º marquês (1745-1827)], dizer ao comandante daquele passo, que era o referido Azambuja, que logo e logo lhe desse o passo livre: respondeu este por uma carta (pois o marquês também tinha escrito ) que o seu comandante e governador estava na vila do Rio Grande, que S. Exc. lhe concedesse três dias para lhe dar resposta; e sendo-lhe concedidos, no mesmo instante deu parte ao coronel, e este para Porto Alegre ao brigadeiro Francisco João Rossio [Rici, no original (c.1733-1805)], que comandava aquela repartição, e não se deu resposta ao marquês, como se prometera; mas entretanto se enterrou o governador Sebastião Xavier, e tomou contado governo o brigadeiro Roscio, e desceu imediatamente para a vila do Rio Grande, onde achou os povos em grande confusão, dispondo-se para passarem a S. José do Norte, antes que entrasse o inimigo; pois sabiam da retirada do exército, e não havia providencias para encontrar o inimigo na fronteira; mas, com a chefia da do novo governo interino a esta vila, se pôs tudo em sossego com a providencia que se veio dar. Fez imediatamente marchar para Jaguarão o coronel Marques, levando consigo as tropas do seu comando; fez marchar tropas a engrossar as guardas de Itaim, como também a do Albardão, e no estreito da terra, entre a lagoa da terra e o mar oceano, pelo receio que havia de entrar o inimigo a surpreender a vila fez descer da fronteira do rio Pardo o segundo corpo do exército, que comandava o tenente-coronel Patrício José Correia da Câmara, com ordens de acometer o inimigo, ou a reunir-se ao exército que comandava o coronel Marques, a quem também deu a mesma ordem. Depois que deu estas providencias, dispunha-se o mesmo brigadeiro a sair para a campanha, quando nesta ocasião chegou a paz; tinha dado todas as providencias que podia dar um bom e experiente general.
Marchava o exército da fronteira do Rio Pardo para Jaguarão, e só lhe faltavam dois dias de marcha, para se ver com o que comandava o coronel Marques, quando receberam os dois comandantes ordem do brigadeiro e governador que não executassem a ordem, que lhes tinha dado, de acometer o inimigo; mas sendo avisado o brigadeiro que o marquês de Sobremonte, general do exército espanhol, sem atenção ao beneficio da paz, perseverava no mesmo projeto, e em espirito armado, o dito brigadeiro escreveu nos termos seguintes: — Que ele havia ordenado ao exército português que passasse o rio Jaguarão para acompanhar o exército de S. M. Católica, que S. Ex. comandava até Montevidéu, mas que suspendera a execução desta ordem, por observar a que tinha de S. A. R. o príncipe de Portugal, que havia celebrado com S. M. Católica tratados de paz; mas que agora via S. Ex. perseverar na intenção de passar aquém de Jaguarão, sem atenção as mesmas razões da paz; e que isto lhe não parecia bem: contudo, se S. Ex.ª era servido pôr em execução seu intento, podia vir; mas que advertisse que havia passar pelo desar de não o concluir, em quanto as águas do dito Jaguarão pudessem levar os cadáveres dos seus soldados; e quando estes fizessem vau, por onde o exército espanhol passasse com as armas na mão para entrar nas terras que ao presente são da coroa de Portugal, e a pessoa de S. Ex.ª viesse na retaguarda, que tivesse a certeza que não havia voltar para o seu quartel, porque o acharia perpétuo, e todo o exército do seu comando nas mesmas terras de Portugal.
Foi tal a aceitação desta carta que, com maduro e prudente conselho, cuidou o marquês em se retirar. Via uma carta cheia de razão, via que as tropas portuguesas anelavam pela peleja, e via finalmente uma serie de continuados estragos, que haviam os espanhóis experimentado; a sua retirada foi a decisão, e nesta forma finalizaram as suas campanhas as tropas desta fronteira, e ficou o rio Jaguarão por divisa, ou servindo de limite, ainda que podia ser pelo Serro Largo.
Enquanto fiz a viagem, que já disse, ao Rio Grande, esteve o Canto em S. Miguel até à minha volta; e os espanhóis a reunirem tropas, para retomar os povos perdidos, e o sargento-mor José de Castro Morais, e a seu exemplo a mais tropa, cuidava mais em locupletar-se, que na conservação daquela conquista.
Chegando eu ao povo S. Miguel na volta do Rio Grande, tinha tomado conta do governo politico daquela nova conquista o sargento-mor José de Saldanha, e retirou-se o sargento-mor Morais, o capitão Manuel Cancro, o capitão José de Anchieta [Anxita, no original; José de Anchieta Furtado de Mendonça (1756-1829)], o capitão Alexandre Guedes, e parte da tropa que guarnecia estes povos, e se recolheram para a fronteira do Rio Pardo, ao corpo de tropa que comandava o tenente Coronel Câmara, onde nesta ocasião havia menos perigo; e pelos choques ou ataques que sucederam se verá.
O sargento-mor Joaquim Félix [Joaquim Félix da Fonseca Manso (1751-1814)] fez sua residência em S. Nicolau, três léguas distante do rio, e o comandante da tropa foi residir em S. Francisco de Borja, vinte léguas ao Sul do dito S. Nicolau, uma légua distante do rio; defronte de S. Francisco de Borja está o povo S. Tomé, além do rio um quarto de légua distante da fronteira espanhola, e o rio por meio. Entre estes dois povos, no passo denominado S. Marcos, houve muitas hostilidades, e deste povo a S. Borja para baixo a Sul tínhamos que defender mais de vinte léguas, que toda esta fronteira era invadida do inimigo, que vinham a ser mais de quarenta léguas de fronteira que devíamos defender só quatrocentos homens contra mais de dois mil, que já se tinham reunido para a reconquista dos povos.
Fui com ordem de comandar a minha companhia com que tinha feito a conquista, por se achar doente o capitão, e ter ficado no povo S. Miguel. Tomei quarteis em S. Nicolau, e dali a poucos dias marchei em socorro ao tenente Manuel dos Santos Pedroso, que se via atacado por um corpo numeroso de inimigos; e como achasse valor naquele oficial para defender aquela entrada, e acudíssemos com tempo, não pode fazer seu desembarque.
Alguns dias ajudei a defender aquela entrada, no enquanto houve vários choques, que vou a referir.
No passo da Cruz, que dista para baixo de S. Borja mais de vinte léguas, foi atacado o tenente Francisco Carvalho da Silva, e o alferes João António da Silveira, por um corpo de inimigos. Estes dois oficiais se portaram com muito valor, defenderam esta entrada com quarenta homens, e perderam um camarada neste ataque; mas destruíram e venceram o inimigo, onde houve nove mortos e bastantes feridos da parte do inimigo.
Passados poucos dias, no passo de S. Marcos, entre S. Borja e S. Tomé, foram duas vezes as nossas guardas destruídas, mas sem perda de gente. Este lugar foi o mais invadido e perigoso, como se verá pelos casos acontecidos. Foi atacado no passo de S. Lucas o tenente Manuel dos Santos Pedroso por um corpo numeroso de inimigos; este lugar dista dezoito léguas acima de S. Francisco de Borja, em cujo ataque se distinguiu muito o alferes Manuel Padilha. Defenderam este lugar valorosamente com cento e sessenta homens, e não só destruíram o inimigo, onde morreram um ajudante de artilharia e dois soldados, como também lhes tomaram duas peças de artilharia que traziam. No passo de Santa Maria no Uruguai foi atacado o cabo de esquadra Bernardino da Silva; ainda que perdeu um camarada, defendeu esta entrada valorosamente.
Continuaram os choques no passo de S. Marcos; e foi atacado o furriel de milícias Victor Nogueira da Silva por um corpo demais de cem homens, achando-se só com quatorze; cercaram-no entre umas laranjeiras, onde se entrincheirou, e sustentou este fogo enquanto lhe durou a munição. Durou este combate perto de uma hora, defendendo-se valoroso, na esperança de ser socorrido da nossa tropa, que ouvia os tiros no povo de S. Borja; mas quando chegou o socorro, já foi tarde; tinha-se-lho acabado a munição e mortos dois camaradas, e entregou-se prisioneiro de guerra, tendo feito grande destroço no inimigo, e já tinham dado à vela as barcas que o conduziam para além do rio Uruguai preso.
Muito sensível nos foi este sucesso, pois eram os primeiros que se viam vencidos e presos naquela fronteira de Missões. Custou a suster as nossas tropas para que não seguissem a resgatá-los, entrando pelas terras do inimigo, onde eram grandes as forças a respeito das nossas: apesar de não termos neste porto barcas, com tudo sempre houve seis homens que intentaram a passagem em uma pequena barca que descobriram, o ocultamente se embarcaram uma noite para executar o seu façanhoso projeto. E como fosse o seu desembarque ao amanhecer, foram sentidos e atacados, onde eles sustentaram por algum tempo este fogo; e conhecendo a temeridade, se retiraram debaixo do mesmo fogo, depois deterem feito alguma hostilidade no inimigo, e sem perigar nenhum deles; mas, sendo seguidos por duas barcas, antes de vencerem o rio, iam sendo abordados, e certamente teríamos que sentir, pois estes homens eram de valor intrépido, e morreriam sem se entregar á prisão; mas valeu que já as nossas balas alcançavam, e sendo socorridos foram salvos.
Os que entraram nesta ação foram um furriel de milícias Raimundo de S. Tiago, e cinco soldados milicianos. Com tantos choques nestas imediações de S. Marcos tive ordem para ir fornecer este lugar, onde foi preso o nosso herói Victor. Cheguei ali com a minha companhia, que se compunha de quarenta praças; observei que além do rio havia um forte com artilharia, e que a sua praça de armas estava imediata: o desembarque para a nossa parte era inevitável, pois tinha mais de uma légua de praia, e toda era desembarque. Vi o grande destroço que tinham feito as balas nas laranjeiras, onde estiveram entrincheirados os nossos camaradas, antes de serem presos, e donde faziam o seu fogo. Formei minhas ideias; mandei vir sessenta índios, para correr com os avisos, armar barracas, abrir picadas, etc. Retirei-me alguma cousa para a retaguarda, para me servir de forte um grande barranco do rio Camaquã, que faz barra no Uruguai, e ali me acampei; ordenei as minhas guardas e sentinelas, as quais eram visitadas por ruim, pois passamos noites em vigia com cartucheira, espada cingida, e arma na mão, fazendo executar à risca as ordens, com o exemplo que dava; lembrava-me dos descuidos em que tinha achado os inimigos, quando os tinha surpreendido, e assim toda a cautela me parecia pouca. Haviam passados 39 dias do meu destacamento, quando, estando para amanhecer o dia 23 de novembro, recebi parte que estava passando o rio um grande corpo de inimigos. Tanto que recebi esta parte, mandei fazer sinal; imediatamente se recolheu a cavalaria; pus toda a minha companhia a cavalo, e depois de ter passado revista, animei-os de novo, segurando-lhes que eu seria o primeiro em receber os golpes dos inimigos. Fiz aviso ao povo de S. Borja, onde tínhamos alguma tropa, e como não aparecesse o inimigo. até aclarar o dia, cuidei em buscá-lo; e quando foi pelas 5 horas da manhã estive na sua frente com 112 homens, pois já me tinha vindo socorro. Topei-me com o inimigo na barra de Camaquã, sobre o barranco do rio Uruguai; coma minha chegada pôs-se em armas, e em linha de batalha com 100 homens na frente, e 50 nos flancos, e a sua retaguarda contra o rio, onde tinha o seu desembarque e munição de guerra.
No socorro que me veio de S. Borja, vieram 6 oficiais, e como se achasse ali o capitão José Borges do Canto, a ele competia o comando desta ação, por ser de maior patente, e às suas ordens me entreguei. Pusemo-nos em consulta, e como esta se demorava, e não se resolvia nada, pois tudo era fazer ver o grande perigo, as grandes forças do inimigo, a desigualdade do terreno, etc., com esta demora me separei destas conferências, e apliquei-me a observar os movimentos do inimigo. Das cinco horas que ali chegámos até as dez não se ordenava este ataque: e observei que embarcavam tropas em socorro, e se não atacávamos nesta ocasião, menos depois de terem passado maiores forças.
Nesta ocasião ofereci-me para entrar naquela ação, resoluto a dar a vida em defesa da pátria e dos estados do nosso soberano, e sendo aceita a minha proposta pelo capitão e mais oficiais, entrei nela pela forma seguinte: — o tenente João Machado e o alferes André Ferreira, com trinta homens de cavalo na frente; o tenente Filipe Carvalho, com o alferes Manuel Carvalho e o alferes João António, com outros trinta no flanco direito; os da frente fazendo fogo no mesmo terreno, a divertir e entreter os inimigos; e os do flanco direito para entrar na ação com o meu sinal, ou para a abordagem das barcas.
O capitão José Borges, com alguns camaradas de reserva, para acudir aonde visse mais perigo, e eu com quarenta homens, ataquei ao flanco esquerdo, que logo se pôs em confusão e fugida. Avanço rápido à retaguarda, e tomo a munição de guerra; passo ao flanco direito, e faço-lhe o mesmo. O tenente e alferes nomeados neste posto, e o capitão com o meu sinal entra na ação, e fazemos fogo à frente, onde os nomeados tenente e alferes sustentam o seu posto. Tanto no fogo que faziam, como com algumas escaramuças entretinham o inimigo. Todos incorporados fizemos fogo mais vivo, e ficam os inimigos vencidos e derrotados, e se declara a vitória desta ação por minha; publicada por aqueles honrados oficiais, como consta dos documentos que tive a honra de apresentar a S. A. R.
Estava além do rio Uruguai o governador daquela fronteira inimiga, que insistia em querer mandar socorro; era o tenente-coronel D. Francisco Belmudes, e por estar imediato aquele povo a S. Tomé, estava aquela praia coberta de povo, que tinha baixado ali a presenciar o ataque, e se retirou bem descontente com o destroço dos seus patriotas. Acabada esta gloriosa ação, recolhemo-nos para S. Borja, com setenta e três prisioneiros, ficando no campo da batalha sessenta mortos, e da nossa parte houve três mortos e quatro feridos: o despojo consistiu em duzentas armas de fogo, algumas espadas, e bastante munição de guerra.
Este foi o último ataque que tivemos naquela fronteira de Missões; logo depois nos chegou a paz, e na declaração dela vi grande desgosto e sentimento nas tropas. Desta forma ficaram aqueles sete povos e o seu grande território anexo ao domínio de S. A. R., ficando por divisa o rio Uruguai, tomados e defendidos sem despesa do estado; mas sim á custa de seus vassalos, não obstante ter-se reunido naquela fronteira mais de dois mil homens, comandados pelo coronel Espíndola, vindos da cidade de Assunção de Paraguai.
Ficou o sentimento aqueles vassalos de Portugal de não ter tempo de levar ao inimigo até além do Rio da Prata, em que lhe não acham dificuldade alguma, senão a vontade do seu soberano, e aceitação de seus serviços, para serem remunerados. Chegou também a ordem para as tropas se retirarem, dirigida pelo governador; encontraram ao tenente Câmara, com o corpo de tropas que comandava, distante do acampamento de Jaguarão dez léguas.
Foi indizível a pena de toda aquela tropa com a certeza da paz, pois via a sua retirada sem fazer ação alguma, e com a lembrança de que tivera o inimigo a vista, e não tivera o gosto de medir as armas; foram aqueles setecentos homens que dissemos que saíram do Serro Largo, para atacar a fronteira do rio Pardo, comandados pelo coronel Quintana.
Estava aquela coluna que comandava o tenente-coronel Câmara na guarda denominada - S. Francisco - duas léguas de Batovi, quando teve parte, pelos nossos exploradores daquela campanha, que aqueles setecentos homens, que fica dito, vinham com desígnio de entrarem. Imediatamente pôs-se em marcha, e o foi encontrar, o qual encontro, foi no passo denominado - Rosário- do rio de Santa Maria: estiveram quase à fala, e chegou o exército inimigo a atirar alguns tiros de peça; mas estava crescido este arroio, e era já tarde, e por esta razão não tentaram a passagem, deixando-a para o dia seguinte.
Naquela noite perdeu o exército inimigo o valor, e se pôs em retirada. O tenente-coronel Câmara, comandante da nossa tropa, não lhe picou a retaguarda, o que foi muito sensível àquela; com tudo e é de louvar que naquela campanha se conservasse com os incómodos das suas moléstias, andando sempre entre os medicamentos.
As tropas que guarneciam a fronteira dos povos de Missões também tiveram ordem para se retirar, depois da publicação da paz; e assim finalizou a guerra naquela capitania. Eu sou testemunha ocular dos factos, ou da maior parte deles, que nesta memória relato; e deixo de expender circunstâncias mínimas por não ser difuso, e cansar a paciência do meu leitor das ações gloriosas que se manobraram nos povos de Missões, em que tive parte, ou fui principal agente. Fiz patente a S. A. R., em requerimento que ofereci, e em todo o tempo provarei a verdade dos feitos até com os mesmos espanhóis.
Lisboa, 18 de setembro de 1806. — Gabriel Ribeiro de Almeida.
Fonte
Revista Trimensal de História e Geografia ou Jornal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, N.º 17, abril de 1843. pp. 3-21, in: https://books.google.pt/books?id=RGNJAAAAcAAJ