terça-feira, 23 de abril de 2024

Transcripto: Relação dos Serviços que pratiquei na conquista dos Sete Povos das Missões (Manuel dos Santos Pedroso, 1802)

Relação dos serviços que pratiquei na conquista dos sete Povos Guaranis das Missões orientais do Uruguai, desde o principio até o fim da Guerra próxima passada.

Autor: Manuel "Maneco" dos Santos Pedroso

[ortografia modernizada]

Havendo-me apresentado voluntariamente na guarda avançada de S. Pedro ao capitão de Dragões comandante Francisco Barreto Pereira Pinto [(1758-1804)] oferecendo-me para o serviço de guerra, logo que se deu ordem para hostilizar aos espanhóis, me encarregou o dito capitão comandante de atacar a guarda fronteira espanhola de S. Martinho, o que eu executei prontamente fazendo retirar aos espanhóis, que ali se achavam, e sem demora participei esta notícia ao sobredito capitão comandante, o qual tomando conta da dita guarda de S. Martinho, e guarnecendo-a com gente nossa me ordenou, que visto falar eu o idioma guarani, me avançasse com os mesmos 20 homens para os estabelecimentos dos índios das Missões, a fim de os persuadir, a que se revoltassem a nosso favor, e serem vassalos portugueses, para o que nós os auxiliaríamos.

Passei as estâncias dos povos de S. Lourenço, e S. Miguel nas quais falei aos índios, que além de me auxiliarem com as cavalgaduras, de que precisei, me asseguraram que todos desejavam passar ao domínio português para o que necessitavam o nosso socorro, e participando eles os meus avisos aos seus respetivos corregedores, escreveram estes sem demora ao mesmo capitão comandante assegurando-lhe o desejo, e boa vontade que todos tinham do nosso socorro para serem vassalos de sua alteza real.

Deixei sete dos meus camaradas de patrulha na estância de S. Pedro, e com licença do mesmo capitão de dragões comandante voltei à minha estância de S. Pedro, a refazer-me de algumas coisas, de que precisava, e a ajuntar mais alguns camaradas; o que tudo fiz em quatro dias, e tornei para a dita guarda de S. Pedro, aonde o referido capitão  de dragões comandante me encarregou o comando de uma partida de 40 homens para ir socorrer José Borges do Canto [José Francisco Borges do Canto (1775-1805)], que se havia dirigido a atacar o povo de S. Miguel, aonde cheguei um dia depois de o dito Canto haver surpreendido, e atacado o acampamento uma légua distante daquele Povo.

Segundo as ordens que me deu o citado capitão comandante, me ofereci para ajudar, ou auxiliar com a minha partida ao sobredito Canto; o qual dizendo-me que ali não era tão necessário o meu socorro, como na costa do rio Uruguai em razão de haver apanhado cartas do governador de Missões [Joaquín de Soria-Santa Cruz y Guzmán (1748-1814), governou entre 1800 e 1802] para o tenente governador do povo de S. Miguel [D. Francisco Rodrigo], nas quais lhe dizia, que naqueles e dias o socorria com reforço de gente, me encarreguei da defesa dos passos do Uruguai, para com mais segurança o referido Canto obrigar, e constranger a render se o dito tenente governador; que se achava encerrado no colégio do mesmo povo de S. Miguel com 150 homens de armas, e 10 peças de artilharia.

Encaminhei-me sem demora para o Uruguai, e com a notícia, que deram os bombeiros espanhóis da minha marcha, duas partidas espanholas, que vinham pelo arroio Piraju, a estância de Santiago em socorro do sobredito tenente governador; sendo cada uma de 50 homens retrocederam, e passaram o Uruguai em cujo passo de S. Isidro encontrei no dia 11 de Agosto o tenente de dragões da partida espanhola da demarcação com 6 dragões e 12 milicianos, aos quais tomei as armas, e deixei que passassem o Uruguai visto irem de retirada da dita demarcação.

Do dito passo fiz retroceder 6 carretas para // o povo de S. Nicolau, carregadas com alfaias da igreja, e géneros dos armazéns, que o seu administrador pretendia fazer passar ao outro lado do Uruguai, o que tudo fiz recolher ao mesmo povo, entregando ao padre cura, o que pertence a igreja, e ao corregedor, o que se havia tirado dos armazéns.


No seguinte dia tendo eu notícia, que o referido tenente governador tinha saído do citado povo de S. Miguel, e se dirigia a passar o Uruguai com 140 espanhóis de armas, 10 peças de artilharia, e uma carreta com petrechos de guerra, e que vários espanhóis se incorporavam a esta partida, me pus em marcha com 20 homens a fim de lhe tomar o armamento, e fazê-la retroceder, o que pratiquei no povo de S. Luís, aonde encontrei sem embargo da capitulação, que alegava o mencionado tenente governador haver ajustado com o citado José Borges do Canto; porquanto receando eu, e sendo muito provável, que de este corpo de gente armada chegasse ao Uruguai, e se reunisse a outro número de espanhóis, cuja passagem para o lado de cá podia favorecer abusando do indulto da mesma capitulação, seriamos obrigados a evacuar as Missões, e perdermos o trabalho desta conquista, que tínhamos conseguido com tanta felicidade, visto a pouca gente nossa que então lá havia.

Dei parte desta minha resolução ao referido capitão de Dragões comandante, que mandou sem demora um dos cadetes seus filhos com um capitão miliciano para deterem o mesmo tenente governador, e demais espanhóis até segunda ordem, e poucos dias depois o capitão de cavalaria miliciana José de Anchieta [no original, Anxeta, José de Anchieta Furtado de Mendonça (1756-1829)] com a sua companhia [,] 10 dragões e um furriel.

Voltei ao povo de S. Nicolau, aonde chegou este socorro; e tendo eu guarnecido os povos de S. Maria, S. Isidro e S. Lucas acompanhei com 10 homens da minha partida ao dito capitão Anchieta, que se pôs em marcha com a sua companhia para o povo de S. Francisco de Borja; cujos habitantes solicitavam de contínuo o nosso socorro: Nesta marcha deixou o sobredito capitão Anchieta sete homens de patrulha no povo de S. Marcos; cuja patrulha foi atacada na noite do dia seguinte pelos espanhóis em grande número ouvindo-se do dito povo de S. Francisco de Borja ao amanhecer os tiros, parti sem demora com 10 homens a socorrer a dita patrulha, que tendo perdido os seus cavalos, e perseguida dos espanhóis procurava ganhar o passo de Camaquã; mas logo que o inimigo viu que chegávamos de socorro, se pôs em retirada atravessando o Uruguai, deixando em nosso poder 500 animais, entre cavalos, e gado vacum: Neste ataque além dos espanhóis feridos, morrerão quatro, e da nossa parte só morreu um miliciano.

Tendo chegado para comandante dos sobreditos povos o major de Dragões [sargento-mor José de Castro Morais], recebi deste ordem para lhe falar, e em consequência me pus em marcha com os meus 10 camaradas para o povo de S. Luís, de onde acompanhei ao dito major na diligência de reconhecer os sobreditos passos, que eu havia guarnecido com os camaradas da minha partida e vários milicianos.

Nesta ocasião passou o tenente governador com a sua família para o outro lado do Uruguai. Segui acompanhando o mesmo major nos reconhecimentos dos passos de baixo, até o sobredito povo de S. Francisco de Borja.

Havendo-se prendido um bombeiro espanhol, que nos deu notícia de haver no arroio Camaquã 5 léguas distante deste povo uma partida espanhola de 12 homens, que andava bombeando o mesmo povo me // ordenou o referido major a fosse eu atacar, o que fui imediatamente com 10 homens, de que resultou morrerem 2 espanhóis, fugirem os mais, e tomarmos 25 cavalos, dos quais 5 eram encilhados, sem haver nenhum prejuízo da nossa parte.

Voltei acompanhando o citado major para o povo de S. Nicolau aonde havia chegado [23 de setembro de 1801] o major Joaquim Félix da Fonseca [Joaquim Félix da Fonseca Manso] para comandante dos mencionados sete povos, dos quais se retirou para a fronteira do Rio Pardo o referido major de Dragões.

Apresentei-me ao dito major comandante Joaquim Félix procurando as suas ordens e dando-lhe conta de tudo quanto eu até então havia praticado nos mesmos povos. encarregou-me da defesa dos sobreditos povos de S. Maria, S. Isidro, e S. Lucas; os quais sendo atacados sucessivamente com forças superiores pelos espanhóis, foram estes sempre rebatidos com perda deixando a 1.ª vez no passo de S. Lucas 8 homens mortos, da 2.ª no povo de S. Isidro levaram muitos feridos; e da 3.ª e, S. Maria levaram 2 mortos e1 ferido, não havendo da nossa parte em todos estes ataques mais do que 1 homem morto.

Havendo no povo de S. Lucas uma guarda espanhola de 30 homens, me ordenou o sobredito major comandante passasse eu com 80 homens ao dito povo a fazer as hostilidades, que se pudesse, o que eu executei no dia 21 de novembro passando o Uruguai pela meia-noite, e atacando a dita Guarda pelas 9 horas do dia, ao tempo que recolhiam a cavalhada.

Matámos 4 espanhóis, aprisionámos 3, e os mais fugiram deixando em nosso poder 100 cavalos.

Fiz montar a cavalo sem demora 20 homens e os mandei bombear até uma légua distante do povo da Conceição recolhendo ao mesmo passo os animais cavalares, e vacuns, que encontrassem e quando chegavam de retirada com 200 dos ditos animais, vinha em seu alcance uma partida de 150 espanhóis, aos quais ataquei com alguns tiros de clavina, de que morreram 3, e os mais se retiraram, logo que descobriram a nossa gente: Pouco tempo depois na ação de passarmos os ditos animais se encaminharam ao passo, onde nos achávamos, 300 espanhóis pouco mais ou menos fazendo-nos fogo com 3 peças de Artilharia: então os atacámos no mesmo passo com tiros de clavina, e lhes matámos 8 homens incluso o seu comandante, aprisionámos outros 8, além dos feridos, que levaram, e tomamos as ditas 3 peças de artilharia com a sua palamenta retirando-se desordenadamente os demais espanhóis sem haver da nossa parte em todos estes ataques ferido algum.

Continuámos a passar os ditos animais. Sete canoas que tomámos; e as sobreditas 3 peças, que conduzimos para o povo de S. Nicolau.

Quando pensávamos em atacar um acampamento de 400 espanhóis comandados por um coronel de milícias, chegou a declaração da paz, que se publicou em 24 de dezembro de 1801.


Porto Alegre, 9 de setembro de 1802

Manoel dos S.tos Pedrozo


Está conforme com o original

Francisco João Rossio


Fonte

Biblioteca Nacional (Brasil), manuscritos, I-31,26,002 (online


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